Este Notes from Outside é um pouco diferente. Em 2021, Ryan Le Garrec deu por si na entrada de um hotel do Quénia, à beira de desistir da Migration Gravel Race, antes sequer de a ter iniciado. Após uma conversa encorajadora, alguns cigarros e 25 cafés, ele convenceu-se. Tinha encontrado uma das mais enriquecedoras aventuras da sua vida. Passado em África e escrito num estilo poético único, este artigo mensal do Notes from Outside vai ser um pouco diferente...
Catherine
Editora, Notes from Outside
Nairobi.
Dois dias antes da corrida.
Entrada do hotel.
Estou a sentir-me deslocado.
Nem me atrevo a tirar a bicicleta da caixa.
E se estiver com um problema mecânico?
Arranjá-la agora só me traria mais stress.
Não quero sair do hotel.
Não estou pronto para a agitação de uma cidade africana.
Sinto-me deslocado.
Todas as pessoas estão equipadas,
preparadas para pedalar.
Assertivas.
Preparadas.
Profissionais.
Estou ligeiramente ressacado.
Enrolo um cigarro.
Devo ir no 25.º café.
Eu sinto-me deslocado.
Estou deslocado.
Prestes a ser comido vivo e cuspido para o chão,
esmagado como um inseto no Maasai Mara.
Falo com o Mikel (Delagrange), organizador da corrida.
Digo-lhe como me sinto assustado.
Pergunto-lhe como funciona uma prova scratch.
Ele presume que vou participar.
Dá-me motivação.
«O pior que podes fazer é ficar nervoso antes do início. Vais pedalar no Mara, meu! Concentra-te nisso!»
24/06/2021
O sol abate-se sobre o solo.
Trepei durante a manhã inteira, e agora algum descanso.
Até que reparo na carraça.
Porque aceitei fazer isto?
Reparo na pequena criatura negra.
A chupar o meu sangue. A alimentar-se.
Arrependo-me de ter deixado o removedor de carraças na mala.
Li acerca das carraças africanas.
Em breve a minha perna vai inchar, vou sentir febre e...
Sou o último.
A «mota-vassoura» está mesmo atrás de mim.
As suas funções: Dar a prova como concluída. Proteger os ciclistas dos predadores perigosos.
O Duncan não é o MEU guarda-costas. Mas parece que é.
Ele conhece os perigos reais.
Não conversámos muito.
Eu tento pedalar ao pé dele, mas ele atrasa sempre o ritmo para restabelecer a distância.
Sei apenas um pouco sobre ele.
Mas observo-o imenso.
Não consigo evitar.
Tem o ar de alguém que sabe algo que eu desconheço.
Sei que ele sabe mais do que eu, por estas bandas.
Duncan partilha comigo um pouco da sua cultura Maasai.
Como os rapazes matavam leões, como ritual de passagem para a idade adulta.
Como os rapazes passam imenso tempo na floresta.
Como vivem em harmonia com a vida selvagem que os rodeia.
Ele deve estar mais preocupado com os leões do que com esta carraça na minha perna.
Levanto o braço, satisfeito por tê-lo perto de mim.
Mostro-lhe a carraça.
Gesticulo que o bicho está a chupar-me o sangue.
Ele olha para mim calmamente.
Estaciona a motorizada.
Aproxima-se e baixa-se perto dos meus gémeos.
Ele belisca o músculo à volta da carraça.
Olha com atenção, toca-lhe.
Quis dizer: «Não a incomode, ou ela solta mais veneno.»
Não digo uma palavra.
Ele sabe mais que eu.
«Sangue seco», diz ele, e dá-lhe um piparote para longe. «Um espinho arranhou a sua perna.»
«Porque dói tanto?» Perguntei eu.
«Estes espinhos têm veneno, mas não é muito forte.»
Depois, reparo no joelho dele.
Falta-lhe um bocado de pele.
«Sim, eu caí, mas não foi grave.»
Tanto alarido com um arranhão. Ele rasgou o joelho e mal se lembra.
Sinto-me estúpido.
A corrida é exigente.
Pedras e vento de frente no primeiro dia.
No segundo dia, altitude e singletracks complicados.
Eu aguento-me.
Devagar, mas bem.
No terceiro e no quarto dia, mais gravilha e velocidade.
Quando o piso volta a ficar difícil, com pedregulhos do tamanho da minha cabeça, aparecem girafas e elefantes.
Ver um elefante no seu habitat natural alivia a dificuldade da volta de bicicleta.
Este evento não é dos mais difíceis, em vários aspetos.
Todas as noites, a minha tenda espera por mim.
Já está montada, com a minha mala lá dentro.
Um luxo.
A equipa local de mecânicos arranja qualquer coisa.
E ainda limpam a bicicleta, para que fique como nova todas as manhãs.
Um luxo.
Todos os dias, o pequeno-almoço é preparado numa fogueira.
Chá, café, ovos, torrada e salsicha.
Um luxo.
Em pleno deserto Maasai Mara, no Quénia,
um chuveiro.
Uma casa de banho.
Um luxo.
Pensei: «Os ciclistas de gravel são velozes,
mas também são mimados.»
Entrada do hotel.
Pequeno-almoço.
Sinto-me abatido.
O entusiasmo foi substituído pelo regresso à vida normal.
Pergunto a um companheiro ciclista se ele também se sente triste.
«Sim. Após estas coisas, sempre....», diz ele.
Não há nada de errado comigo.
Já estive nesta entrada de hotel, ressacado, com vontade de realizar a prova.
Agora, não quero que chegue ao fim.
É um tipo diferente de ressaca.
Vê a Coleção de Ryan sobre a Migration Gravel Race aqui.
Texto e fotografias de Ryan Le Garrec
Ryan Le Garrec é um videógrafo e contador de histórias que descobriu o ciclismo de aventura através de uma ocupação enquanto estafeta. Esse trabalho de estafeta mudou-lhe a vida, e desde então traz com ele a bicicleta para praticamente todas as aventuras, assim como uma caneta e máquina fotográfica.