Deves conhecer a sensação de um dia mau que se tornou tolerável graças a um pouco de ar fresco e exercício físico. Certamente já leste acerca dos benefícios do exercício para o teu bem-estar físico geral. Mas, para algumas pessoas, a aventura é muito mais do que apenas uma forma de desanuviar ou manter a forma física. É uma tábua de salvação psicológica, num mundo que parece não ter sido feito para elas. Nesta edição, Scott Cornish descreve uma desafiante volta de bicicleta transalpina que fez sozinho, e reflete como os altos e baixos da aventura espelham a sua vida de jovem adulto com um cérebro neurodivergente por diagnosticar. Resumindo, é um texto entusiasmante (e perspicaz). Catherine Sempill Editora, Notes from Outside
Catherine
Editora, Notes from Outside
Estou a empurrar a bicicleta, carregada de equipamento para as noites frias, por terreno com erva alta. O caminho de gravilha terminou abruptamente, nesta clareira aberta no final do vale. Estou rodeado por escarpas aparentemente intransponíveis, cobertas por uma fina camada de neve da frente fria da semana anterior. Consigo ver a saída com a pouca luz que resta, um trilho em ziguezague ténue que sobe a ravina, um ligeiro rasgão numa crista quase perfeitamente nivelada.
O singletrack íngreme para sair do vale obrigou a manobras lentas e arriscadas em cada curva apertada, à medida que a luz e a temperatura diminuíam rapidamente. O silêncio deste cenário agreste era quebrado apenas pelo som das rochas fraturadas a rolar pela encosta da montanha. Até o vento era silencioso. Cá dentro, a minha voz interior gritava. A frustração acumulada a cada escorregadela dos pés, em terreno solto. Parei para me recompor. A situação estava a remexer emoções profundas – lembranças das muitas vezes que me senti desafiado pela sociedade «normativa».
Esta viagem transalpina de BTT era a metáfora marcante de uma vida de neurodivergência não diagnosticada. Durante o meu desenvolvimento, sempre dei por mim em situações que achava complicadas. Situações em que o meu cérebro pensava os porquês de levar a cabo uma tarefa presente, após uma vida inteira com a sensação de incapacidade. O resultado foi uma lista de restrições auto-impostas, de coisas que eu conseguia ou não conseguia fazer.
Fui diagnosticado com dislexia diseidética com 30 e muitos anos e apenas recentemente descobri que também manifesto todos os sintomas de perturbação de hiperatividade e défice de atenção e autismo ligeiro. De repente, uma vida inteira a ser «diferente» fez todo o sentido. Agora percebo como o bikepacking me deu as ferramentas necessárias para viver com a minha perspetiva única do mundo.
A rota transalpina que escolhi levar-me-ia de Chamonix até Saint Aygulf, na costa do Mediterrâneo. Uma entusiasmante volta de bicicleta ao longo de 690 quilómetros, com uns insignificantes 24300 metros de altimetria. Atravessei paisagens selvagens e remotas com vistas intermináveis, com a energia das maravilhosas tartes de fruta dos cafés que encontrei pelo caminho. A volta na montanha fez jus à bicicleta utilizada; longas subidas pelas ravinas em singletracks alpinos e descidas estimulantes com sorrisos de orelha a orelha, estimulados pela adrenalina. O terreno estava frequentemente exposto, muito do qual entre os 2000 e os 2600 metros. Não é sítio para se estar, sem a experiência para poder escapar a situações imprevistas. Um ambiente em que sou um mero ponto numa paisagem imensa, e onde surpreendentemente me senti à-vontade.
Nunca me senti à-vontade com os meus colegas e ambiente social, enquanto crescia. Fui frequentemente alvo de ridicularização e tive dificuldade em perceber onde me encaixava. O ensino escolar foi complicado e não consegui compreender os conceitos básicos, quando os livros eram o único recurso disponível. Páginas e páginas de texto que entrava enevoado na minha cabeça. Converter pensamentos em respostas coerentes foi sempre uma luta, tanto a nível verbal como escrito. Eu não compreendia o porquê.
Aulas com base em cinestesia eram o oposto. Quando usava as mãos para criar algo palpável, ou quando aprendia visualmente, a minha mente sentia-se capaz e concentrada, desimpedida do caos habitual. Infelizmente, a inteligência era avaliada através de respostas escritas e os meus outros pontos fortes não eram importantes. Foi ao ar livre que comecei a dar valor a esses pontos fortes e a desenvolver outras capacidades menos orientadas pelo intelecto. As velhas dúvidas ainda aparecem, de tempos a tempos.
Estar naquela encosta exposta, com braços e pernas cansados de arrastar a bicicleta a passo de caracol e a tentar não escorregar a cada passo, fez com que essas dúvidas viessem à tona. Será que conseguiria ultrapassar outras secções a empurrar a bicicleta?
O abrigo que tinha visto há pouco parecia ser uma tentadora desculpa para voltar atrás, uma oportunidade para bater em retirada – como fiz vezes sem conta – de uma situação repressiva. Por vezes, ainda necessito afastar-me e calço os sapatos de caminhada após um dia ocupado de trabalho, em vez de ir beber um copo com os meus colegas. Aquilo que as pessoas nem sempre compreendem é que eu não sou antissocial. Em vez disso, eu preciso de reiniciar o meu cérebro para poder trabalhar no dia seguinte e o meu desejo de socializar, por vezes, tem de passar para segundo plano.
Ultrapassar a ravina estreita ao último raio de luz do pôr-do-sol nos picos distantes pareceu ser um micro triunfo. Isto talvez não signifique muito para outra pessoa, mas a minha cabeça estava cheia de otimismo, uma lembrança de que eu sou capaz, independentemente dos limites que a sociedade me impôs. Nesse momento, deixei de me sentir apreensivo por empurrar a bicicleta noutras situações e passei a sentir a confiança de que seria capaz de completar esta rota.
Quatro quilómetros do outro lado da crista, cheguei ao rústico Refuge de la Coire, um abrigo muito bem-vindo durante o cobertor de temperaturas negativas da noite. Soube a uma recompensa, por não ter desistido.
Sair para a luz suave da manhã de outono revelou um local magnífico e selvagem, rodeado de picos elevados e cristas montanhosas. Os raios de sol que passavam através de um «V» no horizonte criavam um nevoeiro de geada nas mesas do exterior. Devorei o pequeno-almoço, aliviado por ter deixado para trás a ravina.
Nesta altura tardia da temporada, grande parte da infraestrutura que dá apoio aos aventureiros está encerrada e, por essa razão, quase nunca me cruzei com outra alma nestes trilhos alpinos. Neste sítio, uma queda pode trazer graves consequências. Trouxe comigo um comunicador Garmin inReach para as emergências, mas senti-me estranhamente à-vontade nestas paisagens remotas. Nunca me senti só, pois habituei-me a viajar sozinho. Nem sempre sou boa companhia, porque tenho dificuldades em desviar-me dos planos. Contudo, conversei facilmente com as poucas pessoas com quem me cruzei nos trilhos e encontrei uma pessoa ciclista num café, na aldeia de Mons, no último dia.
Enquanto procurava um local para acampar na segunda noite, nos arredores de uma aldeia por cima de Saint Jean de la Maurienne, encontrei um tipo que limpava a bicicleta à porta da última casa. Enquanto perguntava se podia acampar no terreno mais abaixo, apareceu um amigo dele ao virar da esquina. Depois de me oferecer um espaço no seu jardim, de repente estava num grupo de seis a saborear um aperitivo e um reconfortante jantar caseiro. Partilhar histórias de aventuras nas ravinas – na minha segunda língua – era algo que habitualmente não teria feito.
Sempre me senti constrangido em grupos, mas o ciclismo de aventura liga-me às pessoas e ajuda-me a sentir uma confiança que de outra forma não sentiria. Veem-me simplesmente como um colega ciclista, em que a minha voz faz a diferença, e as minhas diferenças não importam. Não preciso de uma fachada para escondê-las. Consequentemente, as histórias recíprocas dos desafios de outros foram cativantes e inspiradoras, e motivaram-me a dar o meu melhor em tudo o que faço.
Os picos e depressões do terreno foram extremos e transportaram-me para inúmeros cenários diferentes e paisagens avassaladoras. Para atingir o ponto mais alto da rota ia precisar de mais um esforço intenso, num trilho íngreme até Col de la Noire a 2995 metros de altitude. Ao fazer uma pausa neste local ventoso e cativante, com vistas panorâmicas dos picos fustigados pelo mau tempo, o terreno espelhava os altos e baixos da vida. É óbvio que todas as pessoas enfrentam os seus desafios, mas o cérebro neurodivergente parece viver os extremos das emoções para além daquilo que consideramos «normal», principalmente a ansiedade, que pode ser intensificada e prolongada – reações que outras pessoas têm dificuldade em compreender. Reconheço agora quais foram as minhas estratégias para lidar com isso: pedalar (ou correr), uma atividade manual ou a criatividade.
As descidas foram incríveis. Muitas foram demoradas e exigentes, numa transição entre singletracks em altitude elevada e pastagens alpinas, muitas vezes a acompanhar o serpentear dos rios pelo vale abaixo. Momentos serenos para aquela que é frequentemente uma mente tumultuosa, inteiramente focada no percurso e piso do trilho. Os cafés de aldeia, muito presentes no vale, foram paragens ideais para os pulsos doridos e para provar delícias de pastelaria!
Sentado numa praia em Saint-Aygulf, o mar está tão calmo como a minha mente, enquanto penso na aventura e nas emoções que evocou. Pensei nos desafios de um cérebro diferente numa sociedade neurotípica, mas acabei por perceber de que forma o bikepacking me abriu portas. Abriu os meus olhos para aquilo que consigo fazer: resolver problemas, organizar a logística, estabelecer ligações com pessoas, ensinar outros e tornou-se um escape para a criatividade, através de palavras e imagens. Esta aventura transalpina foi uma jornada muito intensa a nível físico, e relembrou-me as estratégias e capacidades que desenvolvi para enfrentar as minhas limitações e integrar-me na comunidade local. Estratégias que se tornaram numa tábua de salvação para mim próprio.
Texto e fotografias de Scott Cornish
Scott Cornish é um ciclista e corredor neurodivergente, com uma paixão pelo ciclismo de aventura. Através do seu próximo projeto, Perform Unbound, ele tem a missão de alterar a narrativa acerca da neurodivergência, afastar-se das limitações impostas pela sociedade e permitir que as pessoas perguntem a si mesmas: «E se?» Quando não está montado na bicicleta, podemos encontrá-lo a escrever, a orientar outras pessoas ou a ajudar ciclistas a ajustarem-se devidamente às suas bicicletas, na clínica de Fisioterapia em Chamonix, França.